Lúcida Dani

Amêndoas – Won-pyung Sohn

Esse é um livro classificado como literatura juvenil e ganhou as listas de mais vendidos depois que um dos integrantes do grupo de K-POP BTS o indicou num episódio do reality show que a banda protagoniza. Mas não se engane: Amêndoas, da escritora sul coreana Won-pyung Sohn não é só mais um livro sobre adolescentes. É um livro forte sobre encontrar seu lugar num mundo que está o tempo todo te empurrando para ser um igual ou um pária. 

A história: Yunjae é um garoto que começa contando sua história dizendo que esse é um livro sobre monstros e ele não demora pra nos contar como sua vida tem sido uma sequência de episódios muito desafiadores que por si só dão um livro, porque desestruturaria qualquer um. Mas esse livro aparentemente curto e rápido é muito mais do que isso. 

Yunjae tem uma condição diagnosticada como alexitimia que é uma dificuldade em menor ou maior grau de identificar emoções. No livro, o personagem fica entre não sentir, não identificar e claro, não demonstrar emoções. E isso o coloca em situações perigosas, mas também numa espécie de autismo porque se relacionar com o mundo é muito difícil. Ler as entrelinhas da realidade é impossível para Yunjae. E o mundo não tem piedade de quem não entende as regras básicas, não é? 

A família treina Yunjae para que ele consiga ter autonomia, possa se proteger e principalmente: para que ele não seja um alvo o tempo todo já que todo “diferente” se torna um alvo mais cedo ou mais tarde. 

Quando ele precisa cuidar de si mesmo ainda adolescente é que isso vai se intensificar, porque essa dificuldade é lida também como uma psicopatia. Afinal, o bom senso acredita que sua incapacidade de demonstrar emoções é o mesmo que não sentir. Mas a verdade é que as pessoas estão sempre curiosas sobre esse mundo de Yunjae e ninguém quer se aproximar o suficiente pra desmistificar nada. 

Estamos falando da sociedade atual, os jovens tem celulares, existe um entendimento sobre uma mínima inclusão, mas a prática da escola também reproduz a sociedade em que vivemos, não é? E vamos sentindo a indiferença e a impossibilidade desse garoto ser parte daquele mundo. Então ele tenta ser invisível pra passar logo por essa fase. 

E aí chega na escola mais um esquisito. Dessa vez um esquisito violento com uma história enorme de desamparo. Um garoto que desapareceu aos cinco anos e só foi encontrado novamente aos treze, depois de ser encontrado na China com adultos que não eram seus parentes, mas que diziam ser. Seu nome é Gon e no livro ainda tem outras camadas que ligam ele e Yunjae. O fato é que daí em diante Yunjae será o alvo predileto de Gon. Com muita briga e intimidação. 

O mais fantástico é que essa história não vai se transformar no Bem contra o Mal. Vai se transformar numa espécie de entendimento sobre amizade entre aqueles que não conseguem ser parte do mundo padrão. E não porque não tentem desesperadamente, mas porque pra eles é impossível mesmo. E é o menino que não sabe ler o mundo do sentir que vai conseguir compreender algo sobre o menino que sente tudo.

Gon e Yunjae viverão situações que os aproximam de uma forma que está muito longe do que vemos na lógica dos filmes adolescentes, não é o acaso que os define, é a posição de cada um deles lidando com suas limitações, tentando e errando muito, com a presença de adultos que não são os pais vilões, mas que não tem respostas para tudo e que não podem protegê-los porque a vida é o que é, não dá pra ser o padrão desejado. De perto, cada ser humano é único, ainda que a sociedade goste de dizer que não com seus papéis e regras sociais. 

Porque ler: Eu diria que esse livro deveria ser obrigatório nas escolas, mas também para todos os pais. Absolutamente todos. Porque é um livro que fala da complexidade que é ser adolescente na sociedade em que vivemos e que dá a impressão de ser fácil pela questão tecnológica, mas que continua sendo tão ou mais desafiador do que em qualquer outro tempo. 

E é muito desafiador criar filhos, e é muito desafiador amadurecer e é muito desafiador ser uma pessoa tida como esquisita em qualquer nível. Hoje já se sabe que essa não é uma marca qualquer e que o discurso do “fizeram comigo e eu sobrevivi” é facilmente desmascarado por qualquer profissional de saúde mental que atendeu mais de duas pessoas. Sim, minha gente, é nesse nível. 

Quanto de uma infância e adolescência tidas como adequadas ou inadequadas marcam as pessoas profundamente de formas conscientes e inconscientes, só na vida adulta conseguiremos, mais ou menos, entender a extensão disso. 

E quantos ainda, quando percebem como é um assunto complexo, simplesmente escolhem não pensar nele porque não tem resposta, nem certo e errado. A verdade é que vamos todos nós vivendo e encontrando nossos caminhos como conseguimos. 

E num livro tão curtinho, contando por um adolescente que nem sabe ler toda a complexidade do mundo isso é um tapa na cara de quem está do alto do seu conforto de energia elétrica, esgoto, água encanada, internet banda larga, celulares, Tvs gigantes, convênio médico, comida na mesa, achando que é melhor, que a vida está resolvida. Não é. Não está. 

E todo dia vemos como nossos jovens e crianças estão nos dando esses alertas, não só de hoje, na verdade, mas hoje com estatística pra comprovar, talvez. 

Então para esse livro eu daria vinte estrelas se pudesse. 

E nem falei da construção técnica dele que é realmente brilhante, porque inclusive ficamos incomodados com a maneira desse menino nos contar as coisas. Queremos parar, que menino chato e sem emoção, você se pega pensando em determinado momento. E depois está lá pensando: “Meu Deus, que perigo é a vida desse menino! Que desamparo é a vida do outro! Como ninguém vê?” 

Não vemos nem dos jovens que estão do nosso lado, será que veríamos se nos deparássemos com eles entre os colegas dos nossos filhos? 

É. Tapa na cara atrás de tapa na cara. 

Livro bom é assim. Depois que você leu, fica meses pensando, incomodada. Aí você lembra dele e não é que tem mais coisas ainda pra pensar? 

Cuidados com a leitura: Esse é um livro que vai falar de maneira muito forte sobre ser um excluído. Algumas cenas são bem fortes e violentas, mas nada gratuito, nem exagerado. Você percebe que faz parte do que a autora quer evidenciar sobre o desamparo desses personagens. 

O livro é contado pelo Yunjae, então tem momentos que parecem frios e às vezes meio sem jeito, mas essa é a voz de um garoto que está aprendendo a entender o que fazer com o mundo que ele narra. 

Outro ponto importante é: se você estiver procurando uma paisagem da sociedade sul-coreana esse não será o melhor livro para isso. Não são muitas as descrições de ambiente. É muito mais centrado na percepção do garoto e nos aspectos do cotidiano dele. 

Sobre a autora: Won-pyung Sohn nasceu em 1979, na Coréia do Sul. Antes de se tornar uma autora famosa e premiada pelo livro Amêndoas, ela já era uma diretora de cinema premiada. Na verdade, ambas as paixões remontam aos tempos escolares, e não é só isso. 

A autora é também formada em filosofia e sociologia e é daí que ela acredita vir seu interesse por escrever, como já disse em entrevistas.

Ela tem outros dois livros publicados, sendo que no Brasil, apenas um deles foi lançado: O Impulso, lançado na Bienal do Livro de SP, em 2024. E é claro, está na minha lista de próximos livros. 

Won-pyung Sohn não esteve no Brasil, mas fez um sucesso tremendo na Bienal do livro e está entre a onda sul-coreana que avassala o mundo com sua cultura. 

Particularmente acho fantástico que saibamos um pouquinho mais de um país que é tão diferente do nosso, mas é bom lembrar que nem tudo que é exportado como “produto cultural típico” representa a realidade daquele lugar. Brasileiros sabem bem disso. 

Voltando à autora, acho legal pontuar outras duas coisas: 

No final do livro tem uma nota dela contando um pouco de onde surgiu essa história e qual era o seu objetivo enquanto escrevia. 

Acho notas como essa muito interessantes porque o marketing sobre um best seller pode ir para caminhos bem bizarros e isso preserva um pouco mais da mensagem original que, vamos combinar, é forte e necessária. 

Nessa nota ela conta que fez o primeiro rascunho do livro enquanto a filha tinha quatro meses, motivada por questionamentos do amor incondicional de uma mãe por um serzinho tão dependente que pode dar tão certo e tão errado, dependendo do que a vida trouxer. 

Ela termina dizendo que: 

“(…) espero que esta narrativa tenha encorajado as pessoas a se aproximarem dos feridos, especialmente as jovens mentes que ainda têm grande potencial. Sei que isso é algo enorme para se desejar, mas desejo mesmo assim. Crianças querem ser amadas e podem também demonstrar amor acima de qualquer outra pessoa”. 

Gostei mais ainda depois que li essa nota. 

Amêndoas ganhou: 

Prêmio Changbi de Ficção para Jovens Adultos 

Prêmio Jeju 4.3 Peace Literary. 

Um parêntese – A tal da literatura de cura: Existe hoje, 2024, uma linha de livros que chamam de “literatura de cura” ou “literatura de conforto”, à qual Won-pyung Sohn foi atrelada e que, em entrevista, já rechaçou. Ainda não li muitos livros com essa alcunha, mas é um nome marketeiro, né, minha gente. Lembremos que sim, tem marketing para nos fazer comprar livros também. E tudo bem, só é bom lembrar que livros também são produtos e negócios. 

Mas o que me chama a atenção nesses livros é que há um interesse por algumas coisas: um conflito interno do personagem por encontrar seu lugar no mundo de alguma forma, personagens relativamente jovens, foco no conflito interno e não num romance ou numa experiência mais sexualizada e principalmente, muito longe do suspense, com uma cadência acolhedora, dentro de espaços idealizados como possivelmente confortáveis como bibliotecas, livrarias e afins, além de bebidas como chá, café, etc. 

Muitos desses livros tem sido associados a autores da Coréia do Sul e, minha gente, Amêndoas não tem nada de confortável. É desconforto do início ao fim. Então fiquei bem surpresa de ler coisas desse tipo durante a Bienal. Obviamente pessoas que não leram os livros. Sim, também tem disso nesse mercado. Por isso que é bom lembrar que é um produto como outro qualquer. 

E eu até acho que é por conta dessa selvageria e desconforto do mundo que “livros de cura” ou “livros de conforto” tem um lugar no coração das pessoas. 

Já diria Lenine: 

“Enquanto o tempo acelera e pede pressa 

Eu me recuso faço hora vou na valsa 

A vida é tão rara” 

(da música Paciência) 

Em breve lerei mais a respeito para poder falar melhor também. 

Últimas palavras: Desde que meu filho tinha uns 9 anos, convivo com o fantasma de bullying. As escolas estão pouquíssimo preparadas para lidar com o emocional que envolve os alunos enquanto estão muito mais preocupadas em encher o professor de trabalho, quando o principal trabalho deles deveria ser bons professores, focar em ensinar e perceber o aluno em instâncias que estão além da matéria e da tarefa porque isso faz uma diferença enorme na aprendizagem. 

Mas ok, já aceitei um pouco mais essa impossibilidade das escolas e também toda a complexidade que é lidar com pais que esperam que seus filhos sejam educados em todos os aspectos enquanto estão trabalhando todo o tempo que podem. Não estou dizendo que sou melhor não. Também não tenho as respostas para educar o meu filho e apesar de ser psicanalista e as pessoas acharem que isso é a resposta para todos os males, não é não. Estamos todos imersos na sociedade em que vivemos e é complexo pra todo mundo. Pra quem faz terapia também hahaha 

Mas comecei falando desse assunto porque meu filho teve um episódio de bullying que começou com algumas provocações pequenas que eu na hora percebi como uma tentativa do garoto se conectar com meu filho. Sim, minha gente, as pessoas fazem isso com muito mais frequência do que imaginamos. No caso, era uma criança de 10 anos fazendo isso com outra da mesma idade e claro, meu filho se defendia, porque a tentativa do outro era um ataque. 

Quando percebi que a coisa seguia e ia tomando um tamanho maior e a escola não se envolvia (porque pode mesmo parecer coisa de crianças, “eles se resolvem”, esses discursos que ainda tem bastante, porque é tudo muito subjetivo mesmo), conversei com a coordenadora que chamou os dois alunos para conversar, e neste caso, resolveu em 30 minutos. 

A coordenadora me ligou para contar e depois conversando com meu filho, era exatamente isso: para aquela criança, era uma maneira de estabelecer uma amizade. Ele não entendia porque estava errado. Passada a conversa, tornaram-se amigos. 

Respira fundo, minha gente. Nem sempre é assim que as coisas irão se apresentar obviamente, pode ser um nível muito mais sério sim, a escola pode se importar zero com a situação, pode haver crianças psicopatas, sim, mas no geral, vai aparecer aos poucos, testando a resistência de cada situação. 

E todo abuso vem seguido de vergonha, culpa e uma tentativa de pedido de ajuda. Essa é a hora que o canal aberto de diálogo entre pais e seus filhos é tão importante. 

Mas além do forte assunto de bullying que esse livro vai levantar tem outro ainda mais profundo: ser visto como o de fora, o monstro, o pária, o que ninguém quer por perto, o alvo. 

Nossa, Dani, esse é mais profundo que o bullying? 

Ah sim. Na verdade, é um dos lugares de onde vem o bullying, eu diria. A questão do pertencer e do não pertencer e como reagir a isso.

Yunjae não está muito preocupado com isso porque ele tem um funcionamento diferente, mas todo mundo ao redor dele se preocupa. Como ignorar isso na adolescência? 

Gon parece não se importar, mas na verdade ele está reagindo de uma maneira agressiva à própria certeza de que nunca mais vai pertencer. 

E os adultos desse livro de certa forma estão lá vivendo à própria maneira o seu não pertencer também: os pais do Gon que já não pertencem ao grupo de pais com uma história feliz sobre o filho tão amado, a vó e a mãe do Yunjae que vivem à sua maneira tentando lidar consigo mesmas e as expectativas uma da outra, até o dono da padaria que também não pertence mais ao mundo dos médicos bem sucedidos depois que a esposa morreu. 

No fim das contas, minha gente, é um livro sobre tolerância, sobre olhar para aqueles que estão fora ou feridos, sobre como essa história de padrão é absurda e desumana, mas como ela é uma questão vital para um jovem. Não tem nada de fácil. 

Ficha Técnica:

Título: Amêndoas

Autora: Won-pyung Sohn

Editora: Rocco

Disponível na versão física e e-book

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