Lúcida Dani

Perto do Coração Selvagem – Clarice Lispector

O primeiro livro da Clarice Lispector para ser nosso primeiro livro resenhado. “Perto do Coração Selvagem” é uma imersão no fluxo mental e profundo de uma personagem que busca, de maneira inquietante, seu próprio coração selvagem.

A História: Joana é uma criança com uma mente fértil, inquieta, cheia de energia e ao longo do livro vamos acompanhando a história dela através de flashbacks certeiros de diversos momentos de sua vida. 

Já no primeiro capítulo entendemos que o mundo interno de Joana é enorme! A menina, além de muita imaginação, tem uma maneira muito própria de se movimentar no mundo dos brinquedos, mas também com suas ideias. 

E a cada capítulo fica mais evidente como esse fluxo mental é gigante e tão ou mais importante quanto o que realmente acontece na vida de joana. 

E assim Joana adulta tem “certeza de que dá para o mal”. E fala desse mal. Seria Joana uma psicopata assassina? Não. Joana não está dentro do que dizem que ela deveria ser. Não sabe para que o “felizes para sempre” serve, rouba livros, causa desconforto com a tia que a acolhe, deseja o professor casado. E muitas outras situações que não são o principal da história. 

O principal é ela saber, tão criança, que com as pessoas “só se fala tolices.” Nada do que realmente importa pode ser dito. 

O importante é ela saber que ao lado do marido precisava ser outra e que ele nem imagina quem ela realmente era, que dentro dela pulsava esse selvagem que ela não sabia nomear (”Liberdade é pouco. O que eu desejo não tem nome.”) para ir se aprofundando em si mesma e fazer disso um objetivo, sem julgar, vivendo as situações com um certo desapego como ela aprendeu desde pequena. 

Aos poucos encontrando o tal coração selvagem que é o desejo de ser ela mesma. 

Porque ler: Ler Clarice Lispector é uma experiência a ser degustada. Não é uma leitura rápida porque não está focada em ações, no suspense. É o ritmo do mundo interno que pode ser rápido, às vezes lento, às vezes louco e imprevisível. Mas eu acho que o principal é que Clarice fala muito bem com o século XXI. Para nós, hoje, falar de paisagem mental, ler esse fluxo num livro não é estranho como era em 1943, quando ele foi lançado. Faz parte do vocabulário desse momento da sociedade. Inclusive esse desejo de Joana pelo coração selvagem da vida, pela essência, pelo tal do propósito, está cada vez mais presente no nosso cotidiano também. É quase uma forma de nos humanizar de novo já que somos só produtos, só máquinas, só engrenagens no louco mundo do dinheiro rápido. Joana está profundamente em busca de si mesma, escandalosamente como estamos todos hoje à beira da ansiedade, da insônia, da depressão, da falência, da loucura e do desconhecimento de nós mesmos. 

Cuidados com a leitura: Na maior parte das vezes, os livros de Clarice Lispector não são sobre seguir ações que um personagem está desenvolvendo e sim sobre como uma determinada ação é o resultado de diversos pensamentos, reflexões e impulsos: o fluxo interno acontecendo mesmo. Então não se assuste se você de repente viajar tanto no fluxo de pensamento que até esqueça como é que foi parar ali. Isso realmente acontece hahaha. 

Esse livro, especialmente, eu gosto de ler capítulo a capítulo porque a gente vai acompanhando começo, meio e fim de cada episódio e o pensamento fica ali me rondando e vou anotando umas coisas e percebendo outras. Clarice me dá essas vontades. 😊 

Últimas palavras: Eu quis começar o blog com esse livro porque ele sempre foi muito especial pra mim. Clarice também é muito especial pra mim. Os livros dela sempre me acompanharam em momentos em que minha saúde mental precisava reencontrar um caminho para o equilíbrio e a realidade. 

Eu mesma sempre estive nessa busca do coração selvagem da vida então me identifico enormemente com a Joana, mas também com a Clarice: meio incompreendida, mas seguindo com sua escrita, meio bruxa e vivendo do jeito que ela sabia viver, uma mulher que botava medo pela profundidade que ela parecia alcançar. 

Quando eu ouço pessoas dos anos 60 e 70 falando dela me parece que não entendiam que o profundo que Clarice acessava era ela mesma. Não era ver o profundo dos outros, era de si mesma. Mas o espelho, né. A expectativa. As pessoas acabavam vendo elas mesmas quando viam e quando liam Clarice. Só que numa profundidade que elas não conseguiam entender ou aceitar. 

Sabe aquela ideia de quando você olha o abismo ele te olha de volta. É isso. 

Sobre a autora: Clarice Lispector, nasceu em 10 de dezembro de 1920, na Ucrânia, foi uma das escritoras mais importantes do século XX. Autora de romances, contos e ensaios, sua obra é marcada por cenas do cotidiano e intensas tramas psicológicas, sendo famosa por explorar fluxos de pensamentos complexos de personagens comuns em momentos aparentemente simples.  

Filha de uma família judaica russa, Clarice veio para o Brasil com seus pais e irmãs em 1922, após a Guerra Civil Russa e a perseguição aos judeus. A família passou inicialmente por Maceió, antes de se estabelecer no Recife, onde Clarice cresceu. Aos oito anos, perdeu a mãe, e, aos quatorze, mudou-se com o pai e as irmãs para o Rio de Janeiro, onde se fixaram definitivamente.  

Clarice cursou Direito na Universidade Federal do Rio de Janeiro, mas logo se destacou no meio literário, atuando como tradutora, jornalista, filósofa e ensaísta. Com uma carreira literária marcada por sua originalidade, tornou-se uma das figuras centrais da literatura brasileira e do Modernismo, influenciando novas gerações de escritores. 

Sua obra é vasta e variada, com livros como Perto do Coração Selvagem (1943), seu romance de estreia, até A Hora da Estrela e Um Sopro de Vida, seus últimos trabalhos. Clarice faleceu em 9 de dezembro de 1977, um dia antes de completar 57 anos, vítima de câncer de ovário. Deixou dois filhos e um legado literário composto de romances, contos, crônicas, literatura infantil e entrevistas. 

Ficha técnica:

Título: Perto do Coração Selvagem

Autora: Clarice Lispector

Editora: Rocco

Disponível em livro físico, e-book e audiolivro

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